Dirceu Cardoso Gonçalves*
O Partido Novo ingressou no Supremo Tribunal Federal com arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelo presidente Lula ao mudar por decreto o Marco Legal do Saneamento, que é uma lei aprovada pelo Congresso Nacional. Pela hierarquia dos diplomas legais, uma lei só pode ser revogada por outra da mesma magnitude e jamais por um decreto, que é ato unilateral do Poder Executivo. O decreto é empregado para regulamentar as leis, mas a sua edição com essa finalidade tem artigo autorizativo no próprio texto aprovado pelos parlamentares. Não pode ser de iniciativa e vontade do governante.
Lula tem poderes para revogar a legislação que permite aos Estados privatizar e entregar as companhias de saneamento (água e esgoto) à iniciativa privada. Mas, para exercer essa prerrogativa, deve enviar projeto à Câmara dos Deputados e ao Senado e esperar sua votação, que pode demorar meses (ou até anos) e ainda terminar em rejeição. Dai ter escolhido o atalho do decreto.
Quatro Estados – São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Alagoas – já sinalizaram divergência à nova política adotada por Brasilia e retiraram suas companhias de saneamento da associação nacional que as congrega. Com o decreto modificador, o Governo Federal quer manter o saneamento na empresa pública enquanto a política desenvolvida no Marco Regulatório tem por objetivo atrair a iniciativa privada para investir, operar e lucrar com o setor. O argumento é que o poder público – que opera as companhias estaduais há quase 50 anos, quando foram criadas dentro do Plano Nacional de Saneamento (Planasa) – até hoje não conseguiu realizar as obras qu e a população necessita tanto no fornecimento de água quanto na coleta e tratamento de esgoto. A falta do esgoto é determinante da morte dos rios, poluição ambiental, redução da água potável e comprometimento da saúde da população, especialmente daqueles que moram perto das margens.
A postura do governo Lula em relação às companhias de saneamento é a mesma relacionada ao programa nacional de desestatização que vinha sendo desenvolvido durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Tanto que dez empresas acabam de ser retiradas do processo de privatização. São elas: Empresa de Correios e Telégrafos, Empresa Brasileira de Comunicações, Dataprev, Nuclebras, Serpro, Agência Gestora de fundos garantidores, Centro de Tecnologia Eletrônica Avançada, Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural e Telebras.
Assim que assume, o governo tem liberdade para mudar suas metas políticas. As privatizações, no entanto, vêm ocorrendo no Brasil há quase 30 anos, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. O Partido dos Trabalhadores é contrário e, sempre que assume, as retarda. Espera-se que desta vez, faça as estatais funcionarem conforme os interesses da comunidade e, principalmente, imunes à corrupção.
Quanto ao decreto que hoje rivaliza o governo e o Partido Novo, o fato remete a um acontecimento antigo que presenciei muito tempo atrás numa cidade interiorana onde minha famÍlia residiu. O prefeito – um cidadão de pouca cultura, o que era comum na época,- vetou uma lei aprovada pela Câmara de Vereadores. Mas manteve vigorando um artigo da própria lei. Contestado por um vereador de oposição, que era advogado, o governante municipal argumentou que havia vetado “a lei, não o artigo” e, como detinha maioria na Câmara, assim foi feito. Uma ilegalidade cometida em nome da soberania do Poder Legislativo. O advogado ficou tão injuriado, que renunciou ao mandato de vereador e nunca mais atuou politicamente. A estratégia de Lula não é muito diferente mas, certamente, não provocará renúncias. Espera-se, no entanto, que a ilegalidade, análoga àquela que vi no interior, não seja o caminho escolhido.
Tenente Dirceu Cardoso Gonçalves - dirigente da ASPOMIL (Associação de Assist. Social dos Policiais Militares de São Paulo)
aspomilpm@terra.com.br