
Há mais de quinhentos anos, Maquiavel escrevia O Príncipe com a pena embebida no realismo cru de sua época. Não se tratava de aconselhar sobre virtudes ou ideais, mas de revelar a anatomia do poder nu, despido de máscaras. Hoje, ao olharmos para os líderes do nosso tempo, é impossível não perceber que muitos ainda se guiam pelo mesmo manual – embora troquem pergaminhos por algoritmos e espadas por likes.
“O príncipe deve ser raposa e leão”, alertava Maquiavel. A raposa, astuta, que enxerga as armadilhas invisíveis; o leão, forte, que afugenta os lobos. Zelensky, vestido em sua camisa verde-oliva, transformou-se em raposa diante das câmeras, cada discurso seu uma armadilha contra o esquecimento do Ocidente. Putin, ao contrário, preferiu o rugido do leão, apostando na força bruta para marcar fronteiras com sangue e pólvora. Dois capítulos distintos de um mesmo tratado antigo.
A política, dizia o florentino, não é lugar para inocentes. “É muito mais seguro ser temido do que amado.” Quantos governantes atuais não sustentam sua autoridade com a retórica do medo? Medo do outro, do imigrante, do comunismo, da decadência moral. O medo é a matéria-prima de muitos discursos contemporâneos: invisível como fumaça, mas sufocante como incêndio em uma sala fechada. Na Hungria de Orbán, no Brasil polarizado ou nos Estados Unidos de Trump, o inimigo imaginado é o combustível que mantém a chama do poder acesa.
E, no entanto, Maquiavel advertia: “O príncipe deve cuidar para não ser odiado.” Eis o limite tênue que tantos parecem ignorar. O ódio, uma vez liberado, é como fera que não obedece a comandos.
Se o poder antes se assentava em tronos e coroas, hoje ele se constrói na moldura das telas. “Os homens julgam mais com os olhos do que com as mãos”, escreveu Maquiavel. No século XXI, a frase soa quase profética: governar é encenar, e a política tornou-se teatro incessante. As imagens importam mais que os atos; os gestos, mais que as reformas; o que se mostra, mais que o que se faz. Os algoritmos são os novos escribas: registram, amplificam e distorcem, criando príncipes digitais que falam para milhões e reinam sobre corações e cliques.
O que muda, então, entre o príncipe renascentista e os líderes contemporâneos? Pouco, talvez. Mudaram os palcos: de palácios e praças para câmeras e redes sociais. Mudaram as armas: da espada ao smartphone. Mas o enredo é o mesmo: conquistar, manter e não perder o poder. E nisso, Maquiavel continua soprando verdades ao ouvido dos governantes.
Talvez seja por isso que, meio milênio depois, seu tratado ainda ecoe como um espelho incômodo. Os príncipes de hoje, ao se olharem, veem refletidas as mesmas lições de ontem: que o poder não é virtude, mas cálculo; não é luz, mas sombra. E, no entanto, é nessa sombra que se decide o destino dos povos.
Se Maquiavel observava as intrigas dos palácios florentinos, hoje talvez olhasse para os códigos que regem nossas vidas digitais. O futuro do poder, em chave maquiaveliana, não será decidido apenas nas assembleias ou nas urnas, mas nos fluxos invisíveis de dados, nas redes que moldam opiniões antes mesmo que delas tenhamos consciência.
“O príncipe deve conhecer a natureza dos súditos”, escreveu o florentino. Ora, nunca os governantes tiveram tanta capacidade de conhecer — e controlar — como agora. Se no passado os conselheiros traziam rumores das ruas, hoje os algoritmos entregam, com precisão cirúrgica, o mapa dos desejos, dos medos e das fragilidades de cada indivíduo. O governante que souber manipular esse arsenal terá em mãos não apenas o presente, mas o futuro da própria democracia.
Nesse horizonte, o temor e o amor deixam de ser sentimentos espontâneos e passam a ser calibrados por notificações e anúncios segmentados. O medo poderá ser dos “inimigos invisíveis”: a inflação projetada, o vírus latente, a ameaça climática. O amor, fabricado em slogans que soam como promessas eternas, mas duram a vida útil de uma hashtag.
E aqui Maquiavel volta a sussurrar: “É melhor ser temido do que amado.” No futuro, talvez não precisemos escolher. O príncipe moderno, armado de tecnologia, poderá ser amado de dia e temido à noite; poderá manipular o ódio e o afeto com a mesma leveza com que deslizamos o dedo sobre uma tela.
Resta a pergunta: sobreviverá a democracia a essa alquimia de dados e desejos? Ou viveremos numa era em que os governantes não serão mais homens de carne e osso, mas símbolos cuidadosamente editados, personagens moldados para agradar algoritmos mais do que cidadãos?
O futuro, visto sob a lente de Maquiavel, não é uma promessa de liberdade, mas de cálculo. Os príncipes de amanhã não terão coroas, mas senhas; não governarão cidades muradas, mas territórios digitais. E nós, súditos desse novo tempo, talvez continuemos acreditando que escolhemos — quando, na verdade, já estaremos escolhidos.
Ana Lopes / Jornalista – formada em Comunicação Social. Pós Graduação em Políticas Públicas e em Ciência Politica.
Fonte: AL9 Comunicação