Geral

Aumento de escolas médicas, uma armadilha à sociedade?

 

Donizetti Dimer Giamberardino Filho

Professor de Medicina, conselheiro do CFM (Conselho Federal de Medicina) e coordenador do Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (SAEME).

O ensino médico é uma área de conhecimento de interesse público. Como tal, precisa ser regulado com ênfase na qualidade da formação do profissional, estar baseado em necessidades sociais da população, sob amparo de dados epidemiológicos e características das diferentes regiões do País, e estar integrado à rede organizada e hierarquizada do Sistema de Saúde.

Neste sentido, o interesse coletivo da sociedade civil deve se colocar acima dos demais, como a autonomia das universidades, dos próprios graduandos e, sobretudo, de interesses mercantis ou políticos.

A avaliação do egresso e das escolas de medicina ocorre em todo o Mundo, considerando a importância da qualidade da formação médica para a segurança da sociedade. Os egressos devem ser avaliados durante o curso, para decidir seu prosseguimento, e passar por exame de proficiência na parte final.

As escolas deveriam ser avaliadas por sistemas de acreditação, que conferem uma certificação de qualidade reconhecida internacionalmente. O CFM disponibiliza um sistema de acreditação, o SAEME.

Na Europa e América do Norte existe modelo de pós-graduação obrigatória para o exercício profissional, onde o médico exerce a medicina por período de supervisão obrigatório. O curso médico regular não é terminativo para o livre exercício, ao contrário do Brasil.

A distribuição de médicos e especialistas acompanha as desigualdades do Brasil, um país continental com diferentes realidades socioeconômicas, onde as regiões mais ricas atraem mais profissionais de saúde e outras profissões. Esta situação ocorre principalmente em decorrência de paradoxos do Estado na gestão em saúde: a Constituição determina um SUS de acesso universal e garantia de direitos, mas pratica um financiamento do sistema com fundamento em lógica de mercado.

O Estado é ausente em uma política de recursos humanos de fixação de profissionais de saúde em locais de difícil provimento. A lógica de mercado utiliza o trabalho médico com precarização de seus vínculos, não realiza integração de rede e promove o aumento da desigualdade de acesso à saúde, além de não racionalizar recursos do Sistema ao adotar frequentes transferências de responsabilidades. Assim, a lógica de mercado invade o ensino médico.

Nos dias atuais, o Brasil apresenta aproximadamente 390 cursos médicos, que incluem centena e meia de escolas privadas autorizadas nos últimos 14 anos. Ainda, está em trâmite a autorização de outras 90 escolas em nome da proposta ‘Mais Médicos’ e cerca de 200 cursos aguardando decisão judicial para funcionar. Estamos próximos de 580 mil médicos em atividade e, com as atuais 42 mil vagas autorizadas pelas 390 escolas já em funcionamento, a perspectiva é que o País alcance o patamar de 1 milhão de profissionais até 2033.

O aumento de escolas nesta velocidade é uma situação inédita na sociedade civil organizada no mundo. Mesmo os países mais capitalistas não abrem centros formadores por critérios financeiros ou políticos. A preocupação é com a qualidade do ensino dessas escolas médicas e as consequências à população. O médico com formação inadequada é um risco aos pacientes. Risco ao sistema por sua ineficiência e risco à necessária confiança da relação médico-paciente.

A sociedade precisa acordar para a importância da formação de qualidade e entender que a cobertura assistencial não se resolve com simples o aumento da quantidade de médicos, os quais, sem a necessária qualificação técnica e ética, não oferecerão diagnósticos e terapias adequadas. O médico com formação inadequada terá pela frente situações invisíveis nos primeiros momentos e que vão se revelar depois do acontecido – agravo à saúde do paciente.

A abertura de escolas médicas por decisão judicial, transpassando a regulação governamental, deve ser fundamentada no interesse coletivo da sociedade civil organizada e sua segurança de saúde. Os interesses dos atores envolvidos deveriam ter menor relevância nestas tomadas de decisão. Afinal, o bem coletivo, por ser fundamental o direito à vida, deveria prevalecer.

Botão Voltar ao topo